Uni versos e versos

Uni versos e versos
by gabi grisi

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O haver


    Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura 

    Essa intimidade perfeita com o silêncio 

      Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
      - Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

      Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
      Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
      De ferir tocando, essa forte mão de homem
      Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

      Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
      Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
      Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
      Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

      Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
      Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
      Do tempo, essa lenta decomposição poética
      Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

      Resta esse coração queimando como um círio
      Numa catedral em ruínas, essa tristeza
      Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
      Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história...

      Resta essa vontade de chorar diante da beleza
      Essa cólera em face da injustiça e do mal-entendido
      Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
      Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

      Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
      De pequenos absurdos, essa capacidade
      De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
      E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

      Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
      De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
      E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
      Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

      Resta essa faculdade incoercível de sonhar
      De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
      De aceitá-la tal como é, e essa visão
      Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

      E desnecessária presciência, e essa memória anterior
      De mundos inexistentes, e esse heroísmo
      Estático, e essa pequenina luz indecifrável
      A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

      Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
      De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
      Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
      De não querer ser príncipe senão do seu reino.

      Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
      Pelo momento a vir, quando, apressada
      Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
      Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

      Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
      Esse eterno levantar-se depois de cada queda
      Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
      Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
      Infantil de ter pequenas coragens.

      (Vinicius de Moraes)

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